Releases 10/09/2025 - 16:01

Comida, uma solução climática


Relatório de Uma Concertação pela Amazônia e iCS propõe soluções para conciliar produção de alimentos, justiça social e conservação da floresta.

Nas últimas quatro décadas, a expansão desordenada da pecuária e das monoculturas abriu áreas imensas na região amazônica, pressionando a floresta e comprometendo a segurança alimentar das populações locais. Esse processo transformou os sistemas agroalimentares da região - ou seja, a forma de produzir, distribuir, consumir e descartar alimentos - no principal vetor de desmatamento e emissões de gases de efeito estufa no Brasil.

Diante desse cenário, a rede Uma Concertação pela Amazônia e o Instituto Clima e Sociedade (iCS) se uniram para lançar o relatório Sistemas Agroalimentares e Amazônias: Soluções para Impulsionar uma Transição Justa e Regenerativa, um documento com análises, recomendações e práticas e experiências de campo voltadas para a transformação desse modelo.

“Estamos propondo trilhas para chegar a sistemas produtivos e de consumo mais generosos com as pessoas e com a natureza. Podemos ter um mosaico de soluções e de arranjos produtivos que melhore a qualidade de vida dos amazônidas e enfrente a questão climática, alterando a forma como a gente lida com a terra”, afirma Lívia Pagotto, secretária executiva da rede Uma Concertação pela Amazônia.

Com abordagem sistêmica e interdisciplinar, o relatório reúne contribuições de 45 autores de diversas áreas do conhecimento, além de escutas territoriais. Ele se soma ao esforço de colocar a Amazônia no centro do debate climático e agroalimentar global, especialmente no contexto da próxima Conferência da ONU sobre o Clima (COP-30), que será realizada em novembro em Belém (PA). O documento será apresentado aos enviados especiais de agricultura e bioeconomia da COP-30, com o objetivo de apoiar a tomada de decisão dos governos estaduais e federal.

Rosana Maneschy, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), aponta os efeitos dos modelos extensivos e monocultores na alimentação na região. “A devastação da floresta e a perda da biodiversidade pioram o acesso das comunidades locais a espécies nativas de alimentos”, afirma. E alerta para a substituição crescente do pescado e da mandioca - alimentos centrais da cultura amazônica - por ultraprocessados.

Para que essa transição se torne realidade, será preciso grande coordenação, destaca Thais Ferraz, diretora programática do Instituto Clima e Sociedade (iCS). “Precisamos de políticas públicas norteadoras, com prioridades claras, em que a bioeconomia seja geradora de riqueza para as populações que vivem em áreas de floresta conservada.” Segundo ela, a transformação dos sistemas agroalimentares também é estratégica para o Brasil cumprir suas metas climáticas. “Ao colocar a Amazônia no centro desse debate, o relatório oferece uma contribuição essencial para um novo modelo de desenvolvimento, que articule justiça social, segurança alimentar e integridade”, afirma.

Em 2020, a Amazônia respondeu por 52% das emissões brasileiras, apesar de sua pequena participação no PIB nacional e das baixas posições no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O contraste entre a riqueza biológica e o baixo valor agregado à produção local revela um paradoxo estrutural que precisa ser superado.

Além de mapear obstáculos à transição, debatidos no evento Sistemas Agroalimentares e Amazônia, promovido pelo Estadão, o relatório também aponta processos já em curso que ajudam a manter a floresta em pé. Entre eles, estão o manejo tradicional da biodiversidade, o uso de bioinsumos, práticas agroecológicas e a valorização de saberes ancestrais e da sociobiodiversidade.

Cooperação orquestrada

Uma das principais frentes de ação destacadas no documento é o fortalecimento da agricultura familiar e dos sistemas agroflorestais. Práticas como o cultivo consorciado de mandioca, castanha-do-Brasil e açaí, adotadas por comunidades ribeirinhas e assentados, demonstram que é possível aliar geração de renda e conservação ambiental.

Outro eixo proposto é o fortalecimento de iniciativas como cozinhas comunitárias e programas de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Essa articulação entre agricultura familiar e políticas tem se mostrado uma estratégia eficaz para garantir alimentos frescos e da sociobiodiversidade regional nos pratos da população, além de promover o desenvolvimento econômico local. Em cidades amazônicas com altos índices de insegurança alimentar, iniciativas de cozinhas solidárias vêm se destacando como respostas rápidas, culturais e inclusivas às necessidades nutricionais.

“Muitas vezes, ao lançar um edital local, em nível municipal, a prefeitura acaba deixando de fora os próprios produtores da região, pelo fato de não atenderem a algum requisito. Quando as políticas públicas ou o próprio mercado incentivam as mudanças, elas ocorrem até que rapidamente”, observa Paulo Barreto, pesquisador do Imazon que há 35 anos estuda os sistemas de produção amazônicos. A demanda por merenda escolar, avalia o pesquisador, pode ser um importante indutor. De forma geral, políticas estruturantes como crédito rural específico para a agricultura familiar e extensão rural com foco em manejo sustentável, agroecologia e bioeconomia são essenciais para ampliar escala e impacto, concorda Ferraz.

Para Barreto, as áreas degradadas abandonadas pelos pecuaristas também precisam ser recuperadas por meio de práticas regenerativas. Nesse contexto, em que 60% das áreas destinadas à pecuária foram abandonadas, a integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), a arborização de pastos e o uso de bioinsumos já se mostraram eficazes em larga escala, testados por instituições como a Embrapa. Além de aumentar a produtividade, essas técnicas reduzem emissões, restauram o solo e ampliam a resiliência dos sistemas produtivos. A adoção, no entanto, depende de incentivos financeiros, assistência técnica e regulação ambiental coerente.

Outro pilar fundamental é promover a inclusão produtiva e o acesso de pequenos produtores a mercados sustentáveis. Cadeias como a do babaçu no Maranhão e da farinha de mandioca no Amapá mostram como fortalecer economias comunitárias contribui para reduzir desigualdades, ampliar renda e preservar modos de vida tradicionais.